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domingo, 17 de abril de 2022

* ILHA *


Um passo 

E o outro lado da porta, pórticos, portais

Um passo em falso, o coração exposto, a mão extendida 

Amiga

Fizera-se porto e daí a pluralizar-se o mundo 

E o que se estava posto 

As mãos a se estenderem 

A abrirem rachaduras no fundo do crânio 

Aos recônditos da alma 


- Vês, não és ilha !

Olhas bem por este campo que pisas, é o mesmo que cultivas.

Disse a velha figura na frente de minha casa  

Seus pés retorceram-se em raízes, seu corpo se extendeu firme, o caule e a árvore toda espiaram-me  

Dia-após dia , a espera do tempo e estação vindoura. 


A partir dali, deixara de ser ilha, além de globo, repensaria ser uni,multi,meta, habitar as dimensões nas mais diversas instâncias, pois ainda que insignificante, esperançava a vida no mais puro delírio dos libertos versos. 


17/04/2022


terça-feira, 5 de abril de 2022

* O espelho *


Certa vez ao acordar de sonhos intranquilos , dei-me num palco, sozinho, incumbido a ser protagonista daquele evento. Confortavelmente entorpecido, rodeado de mantas, reparei que estava zonzo, como se tivesse rodado por piruetas a fora no mundo dos sonhos, como se no terreno do inefável houvera ali feito morada, enquanto gélida permanecera a minha carne, estéreis haviam sido os campos que se alastraram em minha jornada.

 Dividido na inerente angústia que me perfazia , ao ser carne, morada do espírito, para se fazer luz, frente as trevas. 


A luz do palco acendera fortemente, meio que turvando minha vista, percebi ali que um de meus sentidos eram inúteis. Recordando então matematicamente do cenário, desci do palco e fui até onde deveria haver a platéia. Estava bastante escuro, e ao notar que não havia ninguém, sem querer dei de encontro com um objeto, foi quando bati fortemente minha cabeça nele, ficando novamente zonzo,tentei tatear bem então sua superfície, estava levemente rachada, foi aí que em minha consciência dei por conta, era “um espelho”. 


De repente alguma luz do cenário orientou-se a acender aquele local.

Olhei-me então no reflexo daquele espelho,e como certamente eu me reconhecia, parecia ser quase igual a mim tal imagem,se não fosse pela rachadura, é claro! 


Fui andando pelo terreno voltado a platéia e percebi que junto ao movimento de minha consciência, havia também a companhia daquela luz, na medida então que eu dava nome as coisas ou vibrava em espírito. Após andar mais um pouco, percebi que ali havia mais um espelho,e poderia ser engraçado ou aterrorizante, mas aquelas figuras, mesmo sob a luz, me lembravam imagens distorcidas em um lago, ou em espelhos próprios de circo. Percebia-se uma infinidade de “eu’s”, figuras de inúmeros tamanhos e que poderiam ter densidades aparentemente diversas, e talvez até almas próprias, mas ao vislumbrar a luz e observar o caminho, notara então que havia ali um exército, me parecia inútil seguir! 

Era tedioso viver diante de si constantemente, uma overdose existencial. Este monólogo vertiginoso, a pensar sobre si, a escutar sempre a própria respiração, ainda que descompassada, sentir as batidas do próprio coração , sim, dele mesmo!Ininterruptamente! Carne!

E lá, no fundo daquele oco torácico onde fica toda sorte de órgãos, fazer zunir o sistemático e ruir, como trovão, um grito estridente na calada da noite, como rato, como porco, como pássaro, como face animal, que teme, mas lança no solo a semente de revolta, de todos os tempos, e com ela a liberdade!


Por fim, caí de joelhos no chão, e junto a isto, estilhaçaram-se todos os espelhos, milhares, num barulho ensurdecedor. Reparei então, que mais a frente, naquele salão reservado a platéia ,ainda ficara um espelho, e então decidi caminhar até sua direção, no entanto, durante o percurso feri meu pé com um dos cacos daqueles espelhos. Do meu pé, logo percebi que saia sangue, apesar de não ser caso grave. 

Ao chegar por fim ao último espelho e defrontar-me com ele, percebi que não havia nada, nem mesmo uma única figura que sugira, qualquer coisa sugestionada diante de todo aquele processo. Pude notar então que meu pé estava doendo um pouco, e ainda que o corte não fosse profundo ,ele não tinha de fato como estancar facilmente o ferimento, foi quando eu resolvi levanta-lo cortado mesmo, a meia altura ,e comprimi-lo contra o chão. 

Quando fizera isso e ainda sem tirar a visão do espelho, percebera que a imagem se movia, como as águas de um rio a reagir com o impacto. Diante disso, eu notei, finalmente ,que aquele não era um espelho comum, ele certamente tinha vida, e se quer talvez fosse um espelho. 

Foi aí então que a luz do salão teatral fora se alastrando, enquanto ,em fluxo ,“as águas” do espelho fluíam. Já não sabia bem o que fazer, mas talvez desejasse algo, pois todo homem, de dentro de sua alma espera algo. De uma grande barra de ouro, a um bom dia de pesca, cada alma no canto desse mundo espera, ou luta por algo. Estendi a mão, sem decerto entender aquele meu gesto intuitivo, então de repente minha mão adentrara o espelho, como num líquido, como água. Notava algo então na superfície de minha mão e quando pude retirar, estava ali: 

"Um lápis" !


Fechei então os olhos por um instante, queria parar no tempo, na eternidade, embora soubesse de minha finitude, e o quanto era falho em  todas as minhas instâncias, ainda assim, estava disposto a dar o melhor de mim e usar de meu espírito para ser guiado e guiar, atentando-me a possível jornada.


Como marca temporal daquele evento e desfecho, repentinamente terminara a espalhar-se por aquela sala grande e vazia uma nítida essência de lavanda. Eu não conhecia bem de essências, talvez, tinha um olfato prejudicado, mas ainda assim apreciava o odor que era capaz de impregnar os perfumes, e também esta mesma característica presente na poesia, das coisas, da vida. 


05/04/2022