Existem
fatos que constantemente passam aos nossos olhos quase que de maneira
despercebida no desdobrar-se
eterno do "corre-corre" cotidiano. Comportamentos que já estão tão
entranhados em nossas rotinas e que, por conta disso, não geram praticamente
qualquer forma de reflexão, simplesmente os incorporamos como hábitos. E se tem
um destes comportamentos que deveria nos intrigar é a habilidade, praticamente
inesgotável, que a nossa espécie tem em prover sentido para tudo que há aqui e
no universo. Apesar de sermos seres limitados em termos físicos, possuímos uma
capacidade imaginativa tão fantástica que podemos equipará-la à complexidade
que avistamos na natureza e em todos os seus fenômenos que nos cercam. À curta
vista, não é problema o fato de que criamos significados para o todo que se
mostra a nós de forma perceptível, ou pelo menos não na maioria das vezes.
Afinal, é através da criação de significados que o homo sapiens se reinventa continuamente e constrói os principais
alicerces para sua existência. Lembrando que um deles é nada mais nada menos
que a própria cultura, que é fundamental para todos os processos nos quais nós,
seres humanos, nos inserimos.
Mas...
e então? Será que este processo criativo ao qual sempre recorremos deve ser
unilateral? Será que estes sentidos que atribuímos às coisas realmente fazem
parte de uma realidade absoluta? Ou há de acreditar-se que tudo pode ser
relativizado e que os significados que associamos aos objetos apreendidos não
passam de uma maneira dentre muitas outras formas as quais o seres humanos se
adequam em sua realidade ?
Nós
tomamos as coisas como absolutas, imutáveis, esquecendo-nos de que isso que
existe é suscetível a corrupção temporal e por consequência também a todos os
tipos de mudanças, desta forma, as coisas podem vim a ter significados
diferentes. Mas por quê?
Entre
filósofos como Parmênides e Platão havia uma espécie de consenso, a respeito da
realidade: não havia, segundo os nossos sentidos, algo em que neste mundo se
pudesse confiar com exatidão. Ora, se nós observássemos aqui da Terra a
circunferência do Sol, poderíamos imaginar erroneamente que este astro não fosse
tão grande em extensão como entende-se atualmente. Baseando-se então que a ação
de criar significados é subordinada a percepção de nossos sentidos, surge uma
pergunta de imediato:diante de toda essa problemática presente, não seria a
busca por uma essência das coisas algo perfeitamente inútil?
Pensando
a partir de um amplo ponto de vista filosófico ou científico, e de acordo com
minha opinião, provavelmente a resposta seria um "não".
Após o
surgimento dessas visões de realidade que abordamos há pouco, surgiram tantas
outras que também objetivariam entender a realidade. Seja como algo absoluto ou
até a partir de um ponto de vista extremamente cético. As visões variariam
bastante com o tempo, ocorrendo diálogos entre filosofias distintas, como entre
a metafísica, mais anterior, e o empirismo, ambas pertencentes a polos opostos .
Do
seio da filosofia, surgiria também, aos poucos, algo que conhecemos como
"ciência". Diferentemente do que vemos atualmente neste campo, o
desenvolvimento inicial se daria por meio de especulações e não da experiência
prática, que é utilizada como principal método científico. Os primeiros
filósofos eram cosmólogos, questionavam-se a respeito da natureza e dos
princípios que a regiam(arché),temos a exemplo: Tales, Anaximandro,
Anaxímenes, Heráclito, Pitágoras e Demócrito. Posteriormente surgiria a ciência
atual, com sua metodologia empirista, afim de obter maior rigor científico com
relação ao entendimento da natureza, mas, mesmo assim, estando também sujeita a
falhas.
David Hume, filósofo escocês que questionaria a
verdade tão intransponível que atribuímos ao conhecimento científico, afirmava
ainda assim que a menor verossimilhança que se podia obter com uma suposta
verdade era através do empirismo, visto que este se baseava, a princípio, nas
experiências. Desta forma, passando pela filosofia de Hume, uma experiência
sensorial sempre era observada partindo de uma suposta relação de causa e
efeito, fundamentados principalmente na experiência; e com essa experiência
aderia-se à conclusão por meio do hábito temporal.
Podemos citar como exemplo o fenômeno natural da
chuva, que ocorre por conta da evaporação da água em seu estado líquido.
Fenômeno este que pode ser observado e entendido em laboratório, a partir da
evaporação e resfriamento condicionados. Mesmo entendendo a causa desse
fenômeno, nossa certeza só se solidificará no hábito, ou seja, na repetição de
resultados equiparáveis em um certo número de experiências.
No entanto, como já foi dito, este conhecimento se dá
de forma empírica. Não existe, na ideia de causalidade, senão o peso do hábito
e da expectativa. Espera-se inevitavelmente a evaporação da água, em
determinada experiência, mas essa expectativa criada não tem fundamento na
racionalidade em si, pois poderia ocorrer que essa água se transformasse em
gelo. Hume afirma que o princípio da causa pode ser inteiramente explicado por
uma ilusão psicológica, e não há nele o menor valor de verdade.
Ainda em meio a esses
estudos que estariam por relativizar grande parte do nosso conhecimento, Sigmund
Freud escreveria mais tarde que as concepções humanas haviam sido "feridas"
três vezes, e que essas "feridas" atingiram nosso narcisismo, isto é,
a bela imagem que possuíamos de nós mesmos.
Foram
nomes importantíssimos e que marcaram para sempre a história da ciência. Cientistas
que quebraram paradigmas. Copérnico, responsável pela derrocada da teoria
geocêntrica, diria que a Terra não era o verdadeiro centro do universo, como
dizia a igreja, mas apenas um dentre tantos planetas que orbitariam o sol num
sistema solar. Darwin, que diria que o homem e outros seres vivos tinham uma
espécie de parentesco, e, portanto, partilhariam uma árvore genealógica que
ascendia em continua evolução, condicionada principalmente pelo processo de
seleção natural. E o próprio Freud, com a descoberta do inconsciente,
identificaria o principal elemento psicológico, até há pouco ignorado, que
seria o principal responsável pelo nosso condicionamento comportamental.
Todos
esses cientistas revolucionariam o nosso entendimento a respeito do mundo e de
nós mesmos, retirando-nos do trono em que nós estávamos sentados há tanto tempo
e nos colocando, por fim, como meros coadjuvantes em todo esse sistema a que
pertencemos.
Vimos,
cada vez mais, as diversas formas de conhecimento que revolucionaram e derrubaram
seus próprios dogmas, acabando por nos deixar boquiabertos e com uma sensação
de engano, devido ao conhecimento que levamos durante toda uma vida e acabamos
por abandonar em parte.
Longe
de um sentido unívoco da realidade, continuamos nossa caminhada a tentar
entender talvez um suposto mistério que se esconde nas coisas. Uma essência
inalcançável, num mundo onde talvez não haja nada de absoluto, mas apenas
verdades temporárias que nos motivam nessa incessante busca por significados
num sentido existencial aparente.
Concluo
esta matéria com um poema de Alberto Caeiro, um dos heterônomos de Fernando
Pessoa, é poeta fortemente ligado a natureza e apresenta-se a seus leitores
como um simples “guardador de rebanhos”.
O
MISTÉRIO DAS COUSAS
(de
“Guardador de Rebanhos” – Alberto Caeiro)
O
mistério das cousas, onde está ele?
Onde
está ele que não aparece
Pelo
menos a mostrar-nos que é mistério?
Que
sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu,
que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre
que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio
como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque
o único sentido oculto das cousas
É elas
não terem sentido oculto nenhum,
É mais
estranho do que todas as estranhezas
E do
que os sonhos de todos os poetas
E os
pensamentos de todos os filósofos,
Que as
cousas sejam realmente o que parecem ser
E não
haja nada que compreender.
Sim,
eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As
cousas não têm significação: têm existência.
As
cousas são o único sentido oculto das cousas.