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domingo, 13 de março de 2022

* O CONTO DOS DOIS VELHOS *

Como num percurso sinuoso de silhuetas a se desenroscarem, pairando em plano onírico, são cuspidas duas criaturas. 

Duas criaturas levemente mórbidas, estranhas, alheias a si, e talvez ao mundo. Flácidas, caquéticas. Os ossos àmostra, o conjunto de pele pendurada, as unhas sujas, cabelos ensebados, além de faltar-lhes dentes pra degustar o que a vida lhes dá. 

Diz-se ainda que um deles é míope. 

 

Os dois se olham rápido, mas deixam para que se siga a sina, a marcha . Logo a frente então surge uma placa, em tom imperativo: SUBAM! 


Nada mais... 


Ali adiante está a penitência anunciada: 


Uma escada em formato de caracol de tamanho inestimável, intimidador. Se tomar pelo pecado de olha-la de baixo é ao mesmo tempo deixar-se levar pela vertigem, e a sedução do medo, a impossibilidade. 


Onde reside a força para aquelas criaturas?


De onde tirariam o combustível necessário para elevar-se , sem o temor de muitas vezes ter a consciência de que também se anda em círculos, de que no teatro da vida, elevamos-nos uma vez para cair logo em seguida, para cravar espinhos , pregos e dar “murros em ponta de faca”. 


-“ Por mim está bem, vou subir!”


Falara um daqueles, em tom esbaforido, como que cansado de narrativas verborrágicas.


Então, em corrente, o outro sobe, da o primeiro passo. 


Começa então uma odisséia, onde aqueles corpos se deixam levar pela sinuosidade, a vertigem, o cansaço, onde a própria força da gravidade passa a atingir efeito ilusório, onde o tempo é relativo. 


As criaturas pastosas, como em papa, o suor se deixando cair pelas dobras, e as articulações estalando, a respiração desfalecendo , porque àquela altura o ar já se consumira, as criaturas se consumiram. Os corações a fraquejarem , e a vista a turvar-se. Não se sabia ao certo mais quem era míope. Na falibilidade, na inerência orgânica de onde viemos e para onde vamos, somos todos irmãos. 


De repente aqueles seres sentem que os degraus sumiram, como que por ilusão de óptica. 


De frente paira uma espessa nuvem escura de onde não se sabe como se formou ou para onde vai. 


Mas como um retrato do que fora , face do sagrado e ainda assim enigma, surge um caramujo, vagarosamente a deslizar, no meio daqueles dois. Era o único elo de ligação que parecia se interpor ali, ainda assim um sinal da natureza. 


Observaram aquele ser aturdidos naquele mar de “nada”, e então seguiram mais uma vez corajosamente frente a névoa, como se o fôlego houvesse se restabelecido. 


Desbravaram o local em meio a escuridão, numa espécie de peregrinação ,como se houvesse talvez perdido  algo a se recuperar. Àquela altura do campeonato não poderia saber exatamente o que era, os bons homens hoje em dia carecem de tantas coisas, perdem-se no caminho, ou mesmo desprendem-se de seus princípios, de seus propósitos. A verdadeira tragédia é quando uma alma se deixa levar, por todos os males que ali no mundo dos homens também está, mas é por isso mesmo que se deve aprender a vigília e certa disciplina , porque nisto consiste a liberdade de saber discernir as verdadeiras escolhas no caminho da ascensão. 


-Estou vendo algo!(1) 


-Ora como você está vendo qualquer sorte de coisa em meio a esta névoa? (2)


- Coloque a mão no seu bolso.(1) 


Estavam ali os dois senhores olhando a frente, mas agora depois um deles notou que havia um volume em seu bolso, retirou então e quando olhou ali, havia uma concha de caramujo vazia. 


Os dois senhores fitaram aquilo, mas um deles esboçara um fino sorriso. 


De repente a névoa que pairava fora aos poucos se desmanchando e como numa sucessão de milagres, dezenas de crianças apareceram ali, bem adiante, a frente daqueles senhores. Elas não o notavam , estavam completamente entrertidas nos seus jogos de faz de contas, empinando pipas. Algumas pipas se chocavam, outras voavam alto, outras iam mais abaixo, mas ali ,elas bem sabiam a verdadeira sabedoria, a vida era aquele jogo bendito, aquele faz de contas, repleto de símbolos e quebra-cabeças, onde o imaginário é pura imensidão. 


Os velhos fecharam os olhos por um instante... 


Quando viram, finalmente, eram eles ali, materializados em primeira pessoa, desde o início.